João Cavanha e a Casa de Madeira na Alameda D.ª Isabel: Um Retrato Efêmero da Curitiba de 1936
Em meio ao ritmo acelerado das transformações urbanas que moldaram Curitiba ao longo do século XX, certas histórias permanecem apenas como traços em papel — arquivos empoeirados, microfilmes esquecidos, ou breves linhas em registros burocráticos. Entre essas memórias efêmeras, encontra-se a história de João Cavanha e sua residência projetada pelo arquiteto Eduardo Fernando Chaves em 1936: uma casa modesta, econômica, construída com o calor da madeira e a solidez simbólica da alvenaria — um símbolo de aspiração, trabalho e identidade em tempos de reconstrução nacional.
Um Projeto para o Cotidiano
No dia 23 de junho de 1936, em pleno auge do Estado Novo e sob o impulso modernizador do governo Vargas, o arquiteto Eduardo Fernando Chaves assinou os desenhos de um projeto que, à primeira vista, parecia simples: “Projéto de casa de madeira com frente em alvenaria para o Snr. João Cavanha”. A grafia antiga — com “j” em “projéto” e a formalidade do “Snr.” — transporta-nos imediatamente à linguagem técnica da época, onde até os documentos carregavam o peso da tradição.
Localizada na Alameda D.ª Isabel, nº 263, uma das vias residenciais em expansão da Curitiba dos anos 1930, a residência foi concebida como moradia econômica de um único pavimento, com área total de 96,00 m². O partido construtivo seguia uma lógica prática e econômica comum à época: estrutura principal em madeira, material abundante, acessível e amplamente utilizado nas edificações populares do sul do Brasil, com fachada em alvenaria de tijolos à vista, conferindo à casa uma aparência mais “urbana”, duradoura e respeitável perante os vizinhos e a administração municipal.
Esse detalhe — a alvenaria apenas na frente — não era meramente estético. Refletia uma estratégia de status social e conformidade urbana: enquanto o fundo e os lados podiam ser construídos com a rusticidade funcional da madeira, a fachada voltada para a rua exibia a solidez da pedra, sinal de estabilidade e civilidade. Era, em essência, uma casa que equilibrava realidade financeira e aspiração burguesa.
O Arquiteto e o Cliente: Duas Vidas na História Urbana
Pouco se sabe sobre João Cavanha. Seu nome não aparece em registros públicos extensos, nem em anuários comerciais da época. Provavelmente, era um trabalhador urbano — talvez empregado público, comerciante, artesão ou funcionário de alguma indústria em ascensão na capital paranaense. Em 1936, Curitiba contava com cerca de 100 mil habitantes e vivia um momento de relativa estabilidade econômica, impulsionado pelo comércio e pelos primeiros passos da industrialização. Para homens como João, ter uma casa própria — ainda que modesta — era um marco de realização pessoal e familiar.
Já Eduardo Fernando Chaves surge nos arquivos como um profissional ativo na cena arquitetônica curitibana da primeira metade do século XX. Seu nome está associado a diversos projetos residenciais, comerciais e institucionais, muitos deles destinados à classe média emergente. Embora não tenha alcançado a fama de nomes como Guinter Parschalk ou Abram Szwarcsberg, Chaves representava o roteiro cotidiano da arquitetura de serviço: projetos funcionais, bem resolvidos, adaptados ao orçamento e às necessidades reais dos clientes. Sua assinatura em plantas como a de João Cavanha revela um profissional comprometvido com a dignidade do habitar, mesmo nas construções mais simples.
O projeto entregue por Chaves incluía planta do pavimento térreo, planta de implantação, corte e fachada frontal, tudo reunido em uma única prancha — prática comum da época, onde a economia de papel e tempo era essencial. O documento, hoje preservado em microfilme digitalizado no Arquivo Público Municipal de Curitiba, é uma janela rara para o cotidiano construtivo da cidade.
A Casa que Existiu — e Desapareceu
Construída sob o Alvará nº 2030/1936, emitido pela Prefeitura Municipal de Curitiba, a casa de João Cavanha foi erguida provavelmente ainda em 1936 ou no início de 1937. Durante décadas, serviu como lar — testemunha de nascimentos, refeições compartilhadas, festas de aniversário, talvez até de lutos silenciosos. Sua estrutura de madeira, sensível ao tempo e à umidade, exigiria manutenção constante; sua fachada de tijolos, por outro lado, resistiria com firmeza.
Mas o destino das edificações, especialmente as modestas, raramente é eterno. Em 2012, a casa foi demolida. Não há registros públicos sobre o motivo — talvez deterioração avançada, talvez especulação imobiliária, talvez a substituição por um empreendimento mais lucrativo. O que restou foi apenas o registro arquitetônico e o alvará, guardados como testemunhos silenciosos de uma vida que um dia habitou aquele espaço.
Legado em Papel: Memória Construída
Embora a casa física tenha desaparecido, seu projeto permanece como documento histórico. Ele revela não apenas as escolhas técnicas de um arquiteto e as necessidades de um cliente, mas também os valores sociais, econômicos e culturais de uma época. A opção pela madeira, a fachada em alvenaria, o tamanho contido, a localização em uma alameda arborizada — tudo isso compõe um retrato da Curitiba que se urbanizava, que buscava modernidade sem abandonar as raízes materiais e afetivas do sul do Brasil.
Hoje, ao estudar esse projeto, não vemos apenas linhas e cotas. Vemos os sonhos de um homem chamado João Cavanha, que, em 1936, decidiu construir um lar. Vemos as mãos de um arquiteto que transformou necessidade em forma. E vemos, também, a fragilidade da memória urbana — aquilo que construímos pode desaparecer, mas a história que deixamos nos arquivos pode resistir ao tempo.
Que a casa na Alameda D.ª Isabel, embora demolida, continue viva na memória da cidade — não como um monumento, mas como um exemplo comovente do habitar comum, digno e verdadeiro.
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Eduardo Fernando Chaves: Arquiteto e Construtor
Denominação inicial: Projéto de casa de madeira com frente em alvenaria para o Snr. João Cavanha
Denominação atual:
Categoria (Uso): Residência
Subcategoria: Residência Econômica
Endereço: Alameda Dª. Isabel, 263
Número de pavimentos: 1
Área do pavimento: 96,00 m²
Área Total: 96,00 m²
Técnica/Material Construtivo: Madeira
Data do Projeto Arquitetônico: 23/06/1936
Alvará de Construção: Nº 2030/1936
Descrição: Projeto Arquitetônico para construção de casa de madeira com frente em alvenaria de tijolos e Alvará de Construção.
Situação em 2012: Demolido
Imagens
1 - Projeto Arquitetônico.
2 - Alvará de Construção.
Referências:
1 – CHAVES, Eduardo Fernando. Projéto de casa de madeira com frente em alvenaria. Planta do pavimento térreo e de implantação; corte e fachada frontal apresentados em uma prancha. Microfilme digitalizado.
2 – Alvará n.º 2030
1 - Projeto Arquitetônico.
2 - Alvará de Construção.
2 - Alvará de Construção.
Acervo: Arquivo Público Municipal de Curitiba; Prefeitura Municipal de Curitiba.



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