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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Missões: as raízes ocultas da América

 

Missões: as raízes ocultas da América

Numa região entrecortada pelos rios Paraná e Uruguai, que inclui territórios do Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai e Uruguai, escondem-se os vestígios de um dos mais importantes – e desconhecidos – capítulos da história da América Latina. Um capítulo que começou em 1603, quando os padres jesuítas, a serviço de um amplo projeto de conversão espiritual dos povos indígenas da Bacia do Prata, fundaram a primeira redução-jesuítica guarani da região. Lá viveram milhares de índios guaranis catequizados, num sistema de cooperação social que combinava o solidarismo e a reciprocidade da cultura guarani às inovações técnicas trazidas da Europa (como a escrita, a imprensa e a metalurgia).

O desenvolvimento e a expansão do projeto levaram à formação de 30 povoados do gênero na região. Durante 150 anos, eles formaram uma sociedade interligada que chegou a abrigar mais de 100 mil pessoas, entre guaranis e jesuítas, e que desenvolveu arquitetura, planejamento urbano e um modo de vida considerados únicos em toda a história da humanidade. Disputas pelo controle desse território, envolvendo as coroas portuguesa e espanhola, determinaram a decadência e a gradual dissolução das Missões jesuítico-guarani. Nos locais onde elas floresceram restam hoje apenas as ruínas de uma sociedade dizimada através da força colonialista e do derramamento de sangue indígena.

Em 1983, as ruínas remanescentes das Missões foram declaradas Patrimônio Histórico da Humanidade, pela Unesco, formando hoje a base do chamado Circuito Internacional das Missões. Além das belezas arquitetônicas restantes, a região oferece ao viajante museus com a arte sacra produzida pelos guaranis evangelizados, muita informação histórica, belos rios e lindas paisagens modeladas pelo clima temperado. Ela também proporciona o contato com um povo e uma cultura única em todo o continente, formados a partir de uma combinação absolutamente singular entre os costumes do homem branco e dos povos guaranis.

A Cruz Jesuítica e as ruínas de São Miguel das Missões ao fundo - Foto: Silnei L Andrade / Mochila Brasil
A Cruz Jesuítica e as ruínas de São Miguel das Missões ao fundo – Foto: Silnei L Andrade / Mochila Brasil

O Brasil missioneiro escondido no RS

Principal pólo de ligação entre a região missioneira e o resto do país, a cidade de Santo Ângelo é o marco zero para quem quer visitar o lado brasileiro das Missões. Já na rodoviária o viajante encontra o gaúcho típico, vestindo suas botas, bombacha, boina e, não raro, segurando a cuia de chimarrão nas mãos (herança dos índios guarani, que apresentaram a erva aos viajantes europeus). Santo Ângelo abriga atrativos como a Catedral Angelopolitana – imitação da igreja de São Miguel Arcanjo – museus e centros de cultura regional com informações sobre o período missioneiro, cachoeiras e uma movimenta vida noturna para os padrões locais.

Mas é na pacata São Miguel das Missões, a menos de uma hora de ônibus de Santo Ângelo, que está o principal tesouro arqueológico missioneiro do Brasil: as ruínas de São Miguel Arcanjo, antiga capital dos Sete Povos das Missões (conjunto de reduções localizadas na margem leste do rio Uruguai). Todos os dias há pelo menos dois horários de ônibus entre as rodoviárias das duas cidades.

Basicamente, o que sobrou em pé foi a estrutura da igreja principal. Sua visão, no entanto, é de uma grandiosidade e beleza arquitetônica impressionantes. Próximo à igreja fica o Museu das Missões (projetado por Lúcio Costa – o criador da planta urbanística de Brasília) e abrigo de peças de arte sacra produzidas pelos habitantes das antigas reduções jesuítico-guaranis.

Todas as noites ocorre nas ruínas, o Espetáculo de Som e Luz, um dos principais atrativos do turismo missioneiro na região. Sentado de frente para a igreja, em uma pequena arquibancada construída no meio do sítio arqueológico, o espectador assiste a um show de luzes que mostra onde ficavam as antigas estruturas da redução (casa dos índios, cemitério, olaria…) ao som de uma locução cheia de efeitos sob uma interpretação dramática da história das Missões, desde seu início até os sangrentos últimos dias. Atores e atrizes da televisão brasileira emprestam suas vozes a alguns dos principais personagens históricos da saga missioneira. (O valor para assistir o espetáculo de som e luz é de R$ 5 – estudantes e maiores de 65 anos pagam meia entrada).

Ao contrário do que muitos possam imaginar, a presença indígena no local não se resume apenas a um passado distante. Hoje poucas famílias guaranis vivem na região, em uma reserva criada a 30 Km de São Miguel das Missões. Lá eles buscam meios para garantir sua sobrevivência física e cultural, através da caça e da manutenção de plantações tradicionais, entre outros hábitos típicos. Os guaranis frequentam regulamente a cidade, inclusive vendendo artesanato dentro das ruínas.

Uma boa dica é passar em alguma das bicicletarias de São Miguel e tentar alugar uma para passear pelas estradas de terra próximas, margeadas por lindos campos e paisagens. A Fonte Missioneira, utilizada para abastecimento de água da redução e que continua funcionando até hoje, é um outro atrativo do local e está a apenas 1 km de distância da igreja.

Além das ruínas de São Miguel Arcanjo, mais três sítios arqueológicos podem ser visitados no lado brasileiros das Missões: São João Batista, São Lourenço Mártir e São Nicolau. Neste último, que se localiza no centro da cidade homônima, o visitante encontrará a adega jesuítica e a pia batismal. O sítio de São João Batista é considerado o de maior acervo arqueológico do Brasil. E é interessante observar, em São Lourenço Mártir, as árvores crescendo incrustadas nas ruínas.

Outro importante monumento é o Santuário de Caaró, a 35 km da cidade de São Luiz Gonzaga. Muito visitado por romeiros, ele marca o local onde foram mortos os padres Roque Gonzáles e Afonso Rodrigues, pioneiros na catequese de índios na região.

Dicas de Missões

Experiência ímpar é visitar a Aldeia Tekoa Koèjú e conhecer um pouco do dia-a-dia dos quase 150 índios que vivem alí. Foram anos de reivindicações até que eles conseguissem seu pedaço de chão… de volta!

Além do artesanato que produzem com habilidade sem igual, os Guarani da Tekoa Koèjú emocionam pela sonoridade de seu canto e beleza de sua voz.
Em 2004 conseguiram lançar o primeiro CD.

Além de contribuir para a sustentabilidade econômica da aldeia, o CD pode ser considerado um documento que vem divulgar e resgatar a cultura musical indígena.

Do outro lado do rio, as ‘Misiones’ argentinas

A travessia do rio Uruguai, entre as cidades de Porto Xavier e San Javier, marca o adeus ao Rio Grande do Sul e a entrada na Província de Misiones, nordeste da Argentina. Lá se concentram alguns dos principais tesouros remanescentes do período missioneiro. Os atrativos do local, no entanto, não se resumem aos sítios arqueológicos e museus das reduções jesuítico-guaranis. Diversas cachoeiras e parques nacionais podem ser visitados pela região, que conta com belas paisagens cheias de pinheiros e outras árvores bastante surpreendentes para olhares brasileiros.

Uma boa forma de conhecer o lado argentino das Missões é estabelecendo-se em Posadas, a capital da província. Situada a cerca de 250 km de Santo Ângelo, a cidade possui várias opções de ônibus para acessar os principais sítios arqueológicos, a maioria deles a menos de uma hora de distância. Para quem gosta de atividades noturnas, Posadas oferece opções como, por exemplo, a Av. Costanera, na margem do rio Paraná (que marca a fronteira entre Argentina e Paraguai). O local possui belas paisagens, praças públicas e vários bares ao seu redor.

Ao viajar pela Argentina missioneira, fica a impressão de ser muito mais da nossa parte do que da deles, a famigerada implicância entre argentinos e brasileiros que, não raro, extrapola os campos de futebol.  Ver “hermanos” vestindo camisetas com a bandeira do Brasil ou ouvir rádios tocando música de nosso país são situações corriqueiras naquele simpático e hospitaleiro pedaço da Argentina.

A redução de San Ignácio Mini é o principal atrativo do turismo missioneiro argentino. Fundada em 1611, ela ficava originalmente num território que hoje pertence ao estado brasileiro do Paraná. Na fuga dos ataques bandeirantes, porém, sua população abandonou a região. Já em sua localização definitiva, San Ignácio Mini chegou a abrigar 4 mil e trezentos habitantes.

O sítio arqueológico possui o maior conjunto urbano preservado das Missões, e permite uma boa noção dos diversos ambientes e espaços que a constituíam as reduções jesuítico-guaranis (pátio central, igreja, casa dos índios, cemitério, etc.). Em certos momentos, a sensação é de estar caminhando por uma cidade fantasma. Ao lado da redução também é mantido um museu com peças de artesanato esculpidas pelos indígenas e trabalhos artísticos retratando o período missioneiro.

Nos arredores de San Ignácio Mini, entre as diversas barracas de artesanato, é possível encontrar várias famílias de índios guarani pedindo “una moneda, por favor” aos turistas, na grande maioria europeus. É um retrato de como a sociedade que hoje lucra com o turismo missioneiro ainda está longe de pagar sua dívida ao povo vítima da destruição das Missões.

Além de San Ignácio Mini, vestígios de outras três reduções (Santa Ana, Loreto e Santa Maria de la Mayor) podem ser visitados na Província de Misiones. Porém muito pouco sobrou para ser visto nestas três localidades.

Língua e sangue guarani no Paraguai

As reduções jesuítico-guaranis do Paraguai também podem ser visitadas a partir de Posadas. Para tanto, basta pegar um ônibus que atravessa a fronteira até a vizinha Encarnación, do outro lado do rio Paraná. Na rodoviária da cidade há opções de transporte em vários horários para os sítios missioneiros do país. Saindo cedo, é possível conhecer tudo sem apertos em apenas um dia.

Cheia de barracas e vendedores ambulantes para todos os lados, Encarnación destoa do clima tranquilo predominante nas demais cidades visitadas até então. A cidade lembra, em vários aspectos, muito mais uma grande cidade brasileira, inclusive devido à pobreza que salta aos olhos. Lá a comunicação fica um pouco mais difícil, já que boa parte da população fala apenas o guarani, língua oficial do país junto com o espanhol. Mas nada que possa inviabilizar a vida de quem visita a região.

O Paraguai é o país que de forma mais visível guarda, entre seus habitantes, a herança do povo e da cultura guarani. Não somente pela língua que falam, mas também pelas próprias feições indígenas presentes na esmagadora maioria da população.

O sítio arqueológico de Trinidad, a 25 km de Encarnación, é o principal daquele país, e talvez o mais bonito de todos os que ainda restam. Fundado em 1706, ele é considerado um exemplo do avanço arquitetônico atingido pelas Missões em sua fase final. A redução conserva estruturas como a cripta, a pia batismal e o púlpito, além do resto de duas igrejas. São impressionantes os detalhes das paredes e portas esculpidas em pedra, além das imagens sacras decapitadas (muito provavelmente pela ação de saqueadores) que se encontram perto da igreja principal. Também estão conservadas algumas escadas da estrutura original, que permitem caminhar pelos patamares da redução para admirar a região e as próprias ruínas vistas de cima.

Na redução de Jesus, próxima a Trinidad, estão os remanescentes de uma igreja nunca concluída devido à expulsão dos jesuítas do continente americano, em 1767.

Para quem mora nos estados acima de Santa Catarina, uma boa forma de retornar é através de Foz do Iguaçu, localizada a menos de 400km de Posadas. Todos os dias vários ônibus ligam a capital da Província de Misiones a Puerto Iguazu, no lado Argentino das Cataratas. Caso sobre tempo (e dinheiro) vale a pena visitar este que é um dos lugares turísticos mais populares do mundo.

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Claudia Severo de Almeida

Jornalista, há 20 anos escreve sobre Turismo Backpacker/Mochileiro e viagens independentes. Participou do corpo de júri especializado do Prêmio 'O Melhor de Viagem e Turismo' (categoria Hospedagem - Hostel). Cocriadora do site Mochileiros.com.