quinta-feira, 27 de abril de 2023

A diáspora dos Fabrícios

 A diáspora dos Fabrícios


Familiares de Afonso Antunes das Neves (segundo a partir da direita),
filho de José Fabrício. Acervo: Assis Antunes das Neves (Pinhão-PR).

A diáspora dos Fabrícios

Ao ser confirmada a morte de José Fabrício, teve início a expulsão dos caboclos da região do atual município de Concórdia. “Desprotegidos”, assinala Ferreira (1992, p. 79), os antigos moradores “ficaram sujeitos aos novos métodos adotados, restando duas opções: deixar suas posses ou tornarem-se empregados dos imigrantes que começavam a chegar”. Eram “a cobiça e a espoliação que vinham junto com o progresso”.

A empresa colonizadora Mosele, através de “seus encarregados pela segurança”, assegurou os despejos com métodos “geralmente violentos”. Assim, “a ferro e fogo, o Alto Uruguai Catarinense ficou ‘limpo’ para os imigrantes”. Por volta de 1925, segundo a mesma fonte, existiam entre dois e três mil caboclos, “alguns armados, não aceitando a demarcação dos lotes”, e outros “protegidos pelo acordo de Fabrício, conquistando legalmente suas terras junto a Brazil Development and Colonization Company”. Os “mais valentes dentre os caboclos”, como Fernando Osório Marques da Silveira, Brasil Bueno e Joaquim Barroso, “passaram a exercer o papel de capangas da Companhia”. Segundo Kurudz, os caboclos que até antes da morte de Fabrício se mostravam “humanitários e até mesmo infantis”, depois disso mudaram de postura. “Se tornara mais complicado após a morte de Fabrício [a relação com os caboclos], mesmo com a oferta de preços especiais, requerendo, sendo o entendimento da Companhia, medidas drasticamente mais fortes”, ou seja, a expulsão (FERREIRA, 1992, p. 80).

Um grupo desses caboclos, liderado por Teodoro Tristão, José Paulino e Vergílio Castilho, resolveu se deslocar para as regiões de Irani-SC e Pato Branco-PR. “Era impossível resistir. O sofrimento e as mortes do Contestado ainda estavam presentes em suas memórias”, enfatiza Ferreira (1992, p. 82).

Tropa formada por militares, capangas da Companhia Mosele e cidadãos para ‘caçar’ jagunços, antigos combatentes do Contestado.
1- Na porta da janela está Dogello Goss, Almerinda Goss, Jairo Goss e Djalma Goss.
2- Na janela levantando a cortina deve ser a empregada.
3- Sentado na escada, com o chapéu na cabeça é o João Estivalet Pires, então professor, depois secretário da prefeitura (gestão Dogello Goss), depois deputado estadual, presidente da Assembléia e conselheiro do Tribunal de Contas.
4- Abaixo do Pires, com a capa redonda está o Domingos Machado de Lima. (ex-prefeito de Concórdia).
5- Em pé no meio, parece que é o velho Crippa;.
6- Na escada com o chapéu na mão está o Dr. Arno Heschel, juiz de direito, futuro desembargador e nome de rua em Florianópolis.

As informações encontram-se no verso da fotografia. Dogello Goss foi prefeito nomeado do município de Concórdia, para o período entre 30 de março de 1937 até 12 de dezembro de 1945. Domingos Machado de Lima foi vereador em Concórdia, pelo Partido Social Democrático - PSD entre 1951 e 1955, posteriormente, foi eleito vice-prefeito de Concórdia para o período entre 31 de janeiro 1951 até 31 de janeiro de 1956. Domingos Machado de Lima assumiu como prefeito eleito para o período de 31 de janeiro de 1961 até 31 de janeiro de 1966.

A foto e a legenda são cortesias de Carlos Comassetto para o Fragmentos do Tempo. Foto do arquivo particular Gil Goss (Concórdia S.C).


Rumo ao Paraná

Por outro lado, cerca de 30 famílias mais ligadas a José Fabrício, se juntaram à família do falecido em busca do exílio, formando a caravana da diáspora com muitos carroções abarrotados de pertences, homens montados ou a pé, todos no rumo da localidade de Patcho Velho, no atual município de Porto União-SC, na divisa com o Paraná, segundo relato de um neto de José Fabrício, Assis Antunes das Neves (filhos de Afonso).

A comitiva era liderada por Afonso Antunes das Neves, então com 17 a 18 anos de idade, mas homem formado, experimentado na companhia do pai desde cedo, quando ainda tinha por volta de 11 a 12 anos. Segundo relatos dos familiares, ele não gostava do que via e ouvia nas andanças com o pai, e por isso não guardou boas lembranças daquele tempo. Passou o resto de sua vida ocupado em cuidar da família, fazendo um esforço para esquecer o passado. “Meu pai era muito resguardado”, lembra Assis. Sua esposa, Marli Terezinha Antunes, 62 anos, filha do imigrante de origem ucraniana João Lichevicz, lembra que “ainda menino [Afonso] seguia o pai, via o pai correr risco de vida”. Talvez por isso continuasse o resto da vida “quieto, não era um homem alegre, bem sério”, diz dona Marli.

Afonso pode ter ficado um pouco desnorteado com a morte do pai, principalmente da forma como ela se deu. E por algum motivo, demorou para contar à mãe, Crespina Maria, o que havia ocorrido com Fabrício. “Foi o Thomaz que insistiu para que ele contasse”, destaca Assis. Não existem informações mais precisas sobre o tempo de permanência da família na região após a morte do caudilho, apenas que “o Marcelino Ruas mandou que meu pai sumisse e levasse a família junto”.

Antes de partir, Afonso e dona Crespina Maria reuniram cerca de 30 famílias de caboclos ameaçadas ou já expulsas de suas terras, aqueles que “ficaram sem o Fabrício”, observa Assis. Numa das carroças, Afonso empilhou diversas caixas de rifles e munição que pertenciam a José Fabrício. Elas poderiam ser úteis caso precisassem se defender, o que não foi necessário. Anos mais tarde, foram descartadas no rio da Barra, no município de Marquinho-PR. Afonso levou ainda um revólver que jamais usaria, mesmo no tempo em que todos andavam armados. “Deixaram o Irani sem nada. E eram gente muito rica. Vieram pobres”, acrescenta dona Marli, que conviveu e conversou muito com Afonso.

Dona Crespina, que se manteve todo o tempo ao lado do filho e demais parentes e não voltou a se casar, “via o sofrimento dele” desde os tempos em que acompanhava o pai. “Naquela época estava sempre de prontidão para sair ou se esconder”, segundo dona Marli. “Tinha muito medo”, diz, de origem incerta. E “respeitava bastante a Crespina”. Era comum que permanecesse “horas e horas olhando as coisas, sem falar nada”.

Segundo Assis, a jornada de seu pai e sua avó terminou na localidade de Patcho Velho, em Porto União-SC, onde Afonso se casou com Angelina Vera, com quem teve seis filhos: Antônio, Geraldo, Emílio, Assis, Hortência e Sebastião – os três últimos nascidos no município de Marquinho-PR. Depois que Angelina faleceu, na década de 1940, Afonso se casou com Jorgina Camargo (filha do tropeiro de José Fabrício, Ozires Marques), tendo dois filhos, Paulo Camargo Antunes das Neves, 60 anos, e Daniel.

Em Marquinho-PR, Afonso se dedicou à lavoura, plantando milho e feijão e criando porcos, informa seu filho Paulo. Gostava muito de churrasco, sobretudo de costela gorda, tomava chimarrão com freqüência, mas não usava a indumentária gaúcha. Devoto de São Jorge e extremamente religioso, batizou todos os filhos e respeitava a Quaresma, época em que não se ouvia música, e “quem tinha instrumento em casa, guardava”, assinala Assis. O jejum nessa época era sagrado. Lia sempre a Bíblia, mas só ia à missa uma vez por mês, pois a capela da região era distante. Ouvia a rádio Gaúcha quase todos os dias e não perdia o programa “Farroupilha”, tendo sido fã de Teixeirinha.

Apesar de estar sempre amuado, triste, Afonso era “caprichoso”, segundo o filho Assis. Ou seja, “depois que a minha mãe morreu, ele não deixou os filhos se espalharem. Ficaram todos trabalhando na roça, derrubando a mata com machado”, assinala. As irmãs e o irmão de Afonso que vieram da região de Irani após a morte de José Fabrício, também se instalaram pela região. Hortência se casou com Rogério Vera, irmão de Angelina, primeira esposa de Afonso, tendo morado muitos anos no município de Cruz Machado-PR. Elíbia foi morar em Guarani-Açu depois de se casar. Domingos, que teve 18 filhos de seu casamento com Mantina Camargo, do grupo que veio de Irani, morreu no início da década de 1990. “Era animado, contador de casos, tocador de gaita”, lembra Assis.

Na época em que Afonso apresentou um ferimento na perna e precisou de tratamento, o filho Assis já estava morando em Pinhão, casado com Marli desde o início da década de 1960. Ele foi levado para lá. Mais tarde chegou dona Crespina, voltando para o lado do filho e assim permanecendo até perder a visão, quando retornou para a casa de Hortência, em Cruz Machado. Ali permaneceu até morrer por volta de 1961, tendo sido enterrada no cemitério da localidade de Palmeirinha-PR. Ela também não gostava de “comentar o passado, era quieta, pelo sofrimento que passou. Ela e o Afonso tinham muito medo. Havia alguma coisa que se viesse a público, relacionada com a vida que José Fabrício tinha levado... do que aconteceu com ele”, observa dona Marli.

Afonso continuou em Pinhão, morando na localidade de Faxinal dos Ribeiros, cuja casa ainda está de pé, ocupada por seu filho Daniel. Segundo relato de Assis, “a morte do meu pai foi a coisa mais linda”. Ele jantou, sentou para escutar a rádio Gaúcha como sempre fazia e foi se deitar. Já estava dormindo quando o filho Daniel ouviu um gemido vindo do quarto, se levantou para ver o que estava acontecendo e encontrou o pai morto. Afonso está sepultado no cemitério de Faxinal dos Ribeiros, no meio de pinheiros e campos de lavoura.


Referência

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.


Assis e dona Marli no interior da fábrica de erva-mate (Pinhão-PR).

Familiares de Assis Antunes das Neves em dia de casamento.

Jurema F. das N. Zunker, neta de José Fabrício, filha de
Hortência, e Reinaldo Antunes (bisneto), em Pinhão-PR.


Hortência Antunes das Neves, filha de José Fabrício, entre as
noras Larissa e Irene. Cruz Machado-PR, 1977.
Acervo: Jurema Fabrício das Neves Zunker (Guarapuava-PR).

Hortência Antunes das Neves com familiares.
Acervo: Jurema Fabrício das Neves Zunker (Guarapuava-PR).


Paulo Antunes das Neves, neto de José Fabrício e residente em
Pinhão-PR, mostra a chaleira usada pelo avô para tomar chimarrão.



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