O caudilho do Contestado
A reconstituição de um assassinato (*)
Por Dante Martorano
Como anda a pesquisa histórica em Santa Catarina? Como contar a violência dos primeiros tempos do Contestado? A narração de hoje, sóbria e verdadeira se assenta no testemunho oral de muitos que contemplaram as feições ou ouviram de seus pais o másculo e amedrontador retrato do caudilho José Fabrício das Neves, com torpeza assassinado à custa de um ardil traiçoeiro.
- Apeie-se Fabrício...
- Comandante Marcelino, com honra aqui estão os seus convidados. Início do quase discurso do caudilho. Ereto na postura de destemor, à altura dum acampamento de beligerantes, José Fabrício nos músculos ostentava o vigor do corpo, nos traços de leveza, no rosto existia coragem.
Dava-se assim, àquela manhã de 31 de março de 1925, o encontro de dois companheiros de armas. Marcelino Ruas e José Fabrício das Neves. Cada um comandante de seu próprio corpo de combatentes, que de volta, a cavalo, retornam de São Paulo. Não viajaram com o Batalhão Bormann, formando pelo Coronel Passos Maia, que embarcara no Erval. Todos, entretanto, haviam marchado contra a insurreição de 1924. Apoio catarinense a Bernardes. Mas logo derrotados os revoltosos, não foi dado vez aos nossos três contingentes de combater os paulistas.
Linda manhã a de 31 de março de 1925. A pouca distância do Banhado Grande, fileiras de barracas armadas pelos homens de Ruas brilhavam ao sol. Perto dali os jagunços haviam “picado” a facão o cadáver do Coronel João Gualberto e mutilado os corpos dos soldados paranaenses. Perto também da cova rasa em que a fé jagunça depositara na ressurreição do monge José Maria.
José Fabrício das Neves e todos os homens de seu estado maior deram cuidado especial na preparação à visita. No caudilhesco cavalheirismo a um convite corresponde o zelo e o esmero na aceitação. Roupas da gala sertaneja. Rusticidade na beleza selvagem dos cavalos fogosos. As melhores armas na cintura. Espadas brilhando na guerreira ostentação.
Mas se desmoronou toda esta sobranceria minutos após a chegada. A um gesto de Ruas, dezenas de homens armados caíram sobre os visitantes. Desprevenidos e embasbacados não puderam reagir. Desarmados, presos, amarrados a cordas e num instante amordaçados. Só a convulsão do ódio e da revolta lhes estremecia os corpos no desespero.
Vida de turbulência, valentia e dominação fora até aquele momento a de Fabrício. A gente esparsa nos campos do Irani impunha a inflexibilidade de comando. Muitos eram seus parentes. Outros prepostos. Todos vassalos.
Em todas as terras cortadas pelo rio Irani o domínio de Fabrício – atingia bravos maragatos ou a seus filhos. Vencidos federalistas do Rio Grande do Sul, no último decênio do século passado [XIX] fugitivos da repressão. Bastou-lhe a travessia do Uruguai para se a acoitar nos ínvios sertões do Contestado. A pregação do monge João Maria fora estímulo para a libertação da miséria, na Terra da Promissão que o místico adivinhara no Irani.
Naquele dia, carregando como fera, atarraxado quase no lombo da mula cargueira, José Fabrício das Neves tangido foi para fora do acampamento de Ruas. Imediatamente após serem presos, ele e seus homens foram escoltados por um destacamento cruzando os caminhos da Fazenda do Campo Comprido, de Pelegrino Silvestre. A poucos quilômetros estava o acampamento das forças comandas pelo próprio caudilho prisioneiro. Muita gente que tudo enfrentava! Sem medo de nada e de ninguém. Ávidos da sangria de seus inimigos. Mas o cortejo se desviou na ocultação do humilhado caudilho, como bicho amarrado.
José Fabrício das Neves arrastado em seus próprios caminhos. Mesmo onde força alguma antes ousara enfrentá-lo. Terras agrestes em que tiniu o ferro de sua espada. Ali no verde daqueles campos, do emaranhado dos fachinais, na fertilidade daquele solo, à vista dos vales das grotas dos sertões do Contestado. Pedaço de Brasil onde a lâmina das armas de José Fabrício das Neves atestava o destemor, a violência e arrogância de quem deixa atrás de si e de seus rastros, a legenda da bravura.
Quando todas aquelas imensidões eram contestadas, o Paraná não conseguiu dali desalojar os Fabrícios. Nem a troca proposta das terras que eles se apossaram, por outros legalizadas na margem direita do rio do Peixe. Resistiram ao banimento. Daqueles paranaenses acirrados na paixão da luta pelas terras do Contestado, mais tarde fizeram com que nunca mais pudessem os Fabrícios terem o perdão. Era a lembrança de seu apoio ou tolerância ao monge José Maria. O ressentimento contra a gente do Arraial do Irani – pela imprensa de Curitiba dada como formado por ‘invasores catarinenses’. Muitos dos homens do caudilho chegaram a brigar junto com os fanáticos.
Fabrício teria entendido àquela manhã tudo como vingança? Das famílias dos mortos paranaenses no entrechoque com os jagunços? Porque fora preso? Perguntas sem respostas para ele e não encontradas pela pesquisa. Boatos houveram e ainda persistem. Gente de Palmas teria posto a prêmio as orelhas do caudilho.
Apearam o amordaçado caudilho no lugar denominado Caçadorzinho. A uma légua mais ou menos do acampamento de Marcelino Ruas. Descidos – das mulas e amontoados em seguida todos os presos. Quem de longe ouviu tantos tiros imaginou o festivo fogo de saudação. Mas das carnes de Fabrício e de seus homens que receberam o chumbo, esvaiu-lhes o sangue.
O pior é que a ciência deste assassinato não se limitou àqueles sertões do antigo Contestado, Não ficou só materializado nas covas ali mesmo abertas e cobertas com pedras. Andou pelo Brasil inteiro a notícia. À Ilha, ao Palácio do Governo, chegaram telegramas candentes de recriminações e de revolta...
Até do marechal Rondon, veio via telégrafo, a repulsa à traição e ao assassinato de José Fabrício das Neves. Valente em Armas como o Exército Nacional, na sustentação da legalidade personificada no governo do Presidente da República – Arthur Bernardes.
(*) Artigo publicado no jornal O Estado (Florianópolis-SC, 24.7.1983), junto com a ilustração de Clóvis Medeiros. Acervo: Biblioteca Pública de Santa Catarina.
- Apeie-se Fabrício...
- Comandante Marcelino, com honra aqui estão os seus convidados. Início do quase discurso do caudilho. Ereto na postura de destemor, à altura dum acampamento de beligerantes, José Fabrício nos músculos ostentava o vigor do corpo, nos traços de leveza, no rosto existia coragem.
Dava-se assim, àquela manhã de 31 de março de 1925, o encontro de dois companheiros de armas. Marcelino Ruas e José Fabrício das Neves. Cada um comandante de seu próprio corpo de combatentes, que de volta, a cavalo, retornam de São Paulo. Não viajaram com o Batalhão Bormann, formando pelo Coronel Passos Maia, que embarcara no Erval. Todos, entretanto, haviam marchado contra a insurreição de 1924. Apoio catarinense a Bernardes. Mas logo derrotados os revoltosos, não foi dado vez aos nossos três contingentes de combater os paulistas.
Linda manhã a de 31 de março de 1925. A pouca distância do Banhado Grande, fileiras de barracas armadas pelos homens de Ruas brilhavam ao sol. Perto dali os jagunços haviam “picado” a facão o cadáver do Coronel João Gualberto e mutilado os corpos dos soldados paranaenses. Perto também da cova rasa em que a fé jagunça depositara na ressurreição do monge José Maria.
José Fabrício das Neves e todos os homens de seu estado maior deram cuidado especial na preparação à visita. No caudilhesco cavalheirismo a um convite corresponde o zelo e o esmero na aceitação. Roupas da gala sertaneja. Rusticidade na beleza selvagem dos cavalos fogosos. As melhores armas na cintura. Espadas brilhando na guerreira ostentação.
Mas se desmoronou toda esta sobranceria minutos após a chegada. A um gesto de Ruas, dezenas de homens armados caíram sobre os visitantes. Desprevenidos e embasbacados não puderam reagir. Desarmados, presos, amarrados a cordas e num instante amordaçados. Só a convulsão do ódio e da revolta lhes estremecia os corpos no desespero.
Vida de turbulência, valentia e dominação fora até aquele momento a de Fabrício. A gente esparsa nos campos do Irani impunha a inflexibilidade de comando. Muitos eram seus parentes. Outros prepostos. Todos vassalos.
Em todas as terras cortadas pelo rio Irani o domínio de Fabrício – atingia bravos maragatos ou a seus filhos. Vencidos federalistas do Rio Grande do Sul, no último decênio do século passado [XIX] fugitivos da repressão. Bastou-lhe a travessia do Uruguai para se a acoitar nos ínvios sertões do Contestado. A pregação do monge João Maria fora estímulo para a libertação da miséria, na Terra da Promissão que o místico adivinhara no Irani.
Naquele dia, carregando como fera, atarraxado quase no lombo da mula cargueira, José Fabrício das Neves tangido foi para fora do acampamento de Ruas. Imediatamente após serem presos, ele e seus homens foram escoltados por um destacamento cruzando os caminhos da Fazenda do Campo Comprido, de Pelegrino Silvestre. A poucos quilômetros estava o acampamento das forças comandas pelo próprio caudilho prisioneiro. Muita gente que tudo enfrentava! Sem medo de nada e de ninguém. Ávidos da sangria de seus inimigos. Mas o cortejo se desviou na ocultação do humilhado caudilho, como bicho amarrado.
José Fabrício das Neves arrastado em seus próprios caminhos. Mesmo onde força alguma antes ousara enfrentá-lo. Terras agrestes em que tiniu o ferro de sua espada. Ali no verde daqueles campos, do emaranhado dos fachinais, na fertilidade daquele solo, à vista dos vales das grotas dos sertões do Contestado. Pedaço de Brasil onde a lâmina das armas de José Fabrício das Neves atestava o destemor, a violência e arrogância de quem deixa atrás de si e de seus rastros, a legenda da bravura.
Quando todas aquelas imensidões eram contestadas, o Paraná não conseguiu dali desalojar os Fabrícios. Nem a troca proposta das terras que eles se apossaram, por outros legalizadas na margem direita do rio do Peixe. Resistiram ao banimento. Daqueles paranaenses acirrados na paixão da luta pelas terras do Contestado, mais tarde fizeram com que nunca mais pudessem os Fabrícios terem o perdão. Era a lembrança de seu apoio ou tolerância ao monge José Maria. O ressentimento contra a gente do Arraial do Irani – pela imprensa de Curitiba dada como formado por ‘invasores catarinenses’. Muitos dos homens do caudilho chegaram a brigar junto com os fanáticos.
Fabrício teria entendido àquela manhã tudo como vingança? Das famílias dos mortos paranaenses no entrechoque com os jagunços? Porque fora preso? Perguntas sem respostas para ele e não encontradas pela pesquisa. Boatos houveram e ainda persistem. Gente de Palmas teria posto a prêmio as orelhas do caudilho.
Apearam o amordaçado caudilho no lugar denominado Caçadorzinho. A uma légua mais ou menos do acampamento de Marcelino Ruas. Descidos – das mulas e amontoados em seguida todos os presos. Quem de longe ouviu tantos tiros imaginou o festivo fogo de saudação. Mas das carnes de Fabrício e de seus homens que receberam o chumbo, esvaiu-lhes o sangue.
O pior é que a ciência deste assassinato não se limitou àqueles sertões do antigo Contestado, Não ficou só materializado nas covas ali mesmo abertas e cobertas com pedras. Andou pelo Brasil inteiro a notícia. À Ilha, ao Palácio do Governo, chegaram telegramas candentes de recriminações e de revolta...
Até do marechal Rondon, veio via telégrafo, a repulsa à traição e ao assassinato de José Fabrício das Neves. Valente em Armas como o Exército Nacional, na sustentação da legalidade personificada no governo do Presidente da República – Arthur Bernardes.
(*) Artigo publicado no jornal O Estado (Florianópolis-SC, 24.7.1983), junto com a ilustração de Clóvis Medeiros. Acervo: Biblioteca Pública de Santa Catarina.
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