domingo, 22 de maio de 2022

"Não é curitibano ou não conhece Curitiba quem nunca ouviu falar da Boca Maldita, mas há um outro espaço, que remete a esse já folclórico ambiente, que também chama a atenção: a Boca do Brilho. Ali brilham engraxates e personagens típicos que em uma horinha de prosa – e de retratos – revelam a própria história da cidade e memórias dessa antiga profissão.

 "Não é curitibano ou não conhece Curitiba quem nunca ouviu falar da Boca Maldita, mas há um outro espaço, que remete a esse já folclórico ambiente, que também chama a atenção: a Boca do Brilho. Ali brilham engraxates e personagens típicos que em uma horinha de prosa – e de retratos – revelam a própria história da cidade e memórias dessa antiga profissão.


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Paninho - O advogado Airton Silva, 83, é presença constante na Boca do Brilho. Para ele, os 20 minutinhos de conversa com o engraxate fazem parte da rotina desde os seus 15 anos de idade.Foto: Jonathan Campos / Gazeta do Povo.

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Tico, o engraxate mais antigo da Boca do Brilho. Foto: Jonathan Campos / Gazeta do Povo.

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Os engraxates de Curitiba, que trabalharam por décadas ao ar livre na Rua XV antes de “ganharem” a Boca do Brilho. Foto: Jonathan Campos / Gazeta do Povo.

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O engraxate conhecido como Chaveirinho: 24 anos de labuta. Foto: Jonathan Campos / Gazeta do Povo.

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Na dúvida, mantenha os sapatos bem lustrados e siga a dica do experiente engraxate: “devagar e calmo, mas sempre longe”. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.

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Pintando - A série “escova-o-sapato-limpa-passa-pano-aplica-graxa-e-ainda-mais-um-pouco-se-precisar” pode ser feita até de olhos vendados. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.

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As poltronas foram escolhidas também pelos engraxates. Foto: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo.

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Cada engraxate tem seu método de trabalho e sua própria organização. Foto: Jonathan Campos/divulgação.

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Atualmente, há apenas 10 engraxates trabalhando no local. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.

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A Boca Do Brilho foi regulamentada por decreto em 2001. Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo.
ENTRANDO NA BOCA DO BRILHO
"Não é curitibano ou não conhece Curitiba quem nunca ouviu falar da Boca Maldita, mas há um outro espaço, que remete a esse já folclórico ambiente, que também chama a atenção: a Boca do Brilho. Ali brilham engraxates e personagens típicos que em uma horinha de prosa – e de retratos – revelam a própria história da cidade e memórias dessa antiga profissão.
É o caso de Manuel Antunes da Silva, de 66 anos, mais conhecido por Tico. Se precisasse trabalhar de olhos vendados por um dia, o engraxate não teria problemas. Cada etapa do processo está em sua memória há tanto tempo que não existem acetona ou sabão capazes de apagar a sequência de “escova-o-sapato-limpa-passa-pano-aplica-graxa-e-ainda-mais-um-pouco-se-precisar” que faz parte de sua rotina há quase quatro décadas.
Ele aprendeu o ofício com o irmão mais velho quando ainda era um “piá” de sete anos, em União da Vitória, sudeste do Paraná. Na juventude, mudou-se para Curitiba e logo começou a lustrar os sapatos dos passantes da Rua das Flores, em frente ao Palácio Avenida. “A gente usava aquelas cadeiras de madeira dos Móveis Cimo, pesadas feito uma tonelada de açúcar”, lembra.
Entre um sapato e outro, Tico até se aventurou em outras profissões – já foi ajudante de motorista, eletricista e auxiliar de indústria –, mas virava e mexia e não dava outra: voltava para a graxa.
A Boca do Brilho fica na região da Boca Maldita, um espaço que há décadas reúne a maioria dos lustradores de sapato da capital paranaense. Não é difícil entender, aliás, por que os engraxates, ofício que nasceu em forma de respeito quando um operário poliu as botas de um general francês e ganhou uma moeda de ouro, se estabeleceram ali, no ponto mais central da Curitiba antiga. A explicação é simples. Onde há homens reunidos na rua, há sapatos a serem polidos.
A oferta entre demanda e procura, no entanto, foi regulamentada na década de 1990, quando todos os engraxates da região foram transferidos para a Praça Osório, ao lado da Boca Maldita. Trabalhavam lado a lado, cada um com sua cadeira de madeira e caixinha de ferramentas em uma primeira tentativa de regulamentar o espaço.
O reduto dos lustradores de Curitiba foi inaugurado oficialmente em 2001, entre a Praça Osório e a Boca Maldita, como parte de um projeto de revitalização da região.
“O desenvolvimento da Praça Osório foi uma das primeiras intervenções da gestão Lerner, no início da década de 70. De lá para cá [início dos anos 2000] não havia sido feita nenhuma atualização. Estava uma bagunça”, opina o arquiteto responsável pelo projeto que revitalizou a praça, Manoel Coelho.
A Boca do Brilho fez parte da mudança. Os 28 engraxates que trabalhavam ao ar livre na lateral da cancha esportiva da Praça Osório receberam, então, um espaço protegido da clássica instabilidade climática curitibana.
“O projeto foi muito democrático e participativo, teve assessoria dos engraxates. Perguntei como eles queriam as cadeiras e os móveis foram feitos de um modo que atendesse às necessidades deles”, afirma o arquiteto.
Assim, cada um dos 28 lustradores ganhou uma poltrona de couro, um banquinho e gavetas para chamar de suas. Também passaram de ambulantes à categoria de autorizados, segundo informa o Artigo 2º do Decreto de Lei nº 518, de 2001.
Porém, se durante décadas os engraxates de Curitiba trabalhavam a todo vapor, hoje a Boca do Brilho conta com apenas 10 engraxates para uma média de 10 clientes por dia, que pagam R$ 10 para terem os sapatos lustrados com maestria.
O número é baixo, mas não capaz de desanimar quem ainda está por lá. “Antigamente dava muito mais serviço, mas mesmo assim ainda dá para se manter. Eu gosto do que faço, tudo o que tenho hoje devo à graxa”, diz Tico.
Tico chega à Boca do Brilho todos os dias às seis e meia da manhã, 30 minutos antes de o serviço abrir ao público. “Dá tempo de ler um jornalzinho, se atualizar para poder conversar depois”, conta.
Segundo o engraxate, são três os únicos assuntos que circulam entre as poltronas acolchoadas: política, futebol e mulher. Tico é expert em cada um deles.
E cada profissional tem sua própria maneira de trabalhar. Assim que cada cliente desce da poltrona, Aparecido Rodrigues da Silva, conhecido apenas como Chaveirinho, 56 anos (“na graxa” há 24), puxa uma portinha de madeira rente ao chão, abaixo do assento, e tira de lá um balde de plástico cheio de água da praça. Depois, abre uma das quatro gavetas ao lado da portinha e pega uma barra de sabonete. Esfrega as mãos com vigor e as mergulha na água que, ao fim do dia, fica turva de tanta graxa. Por trás da fala mansa e dos movimentos delicados do pano sob o couro, o engraxate tem um senso de humor que conquista qualquer um. “É que sou baianeiro, filho de pai baiano e mãe mineira”, conta, rindo.
Assim como Tico, Chaveirinho (que ganhou o apelido na época da infância e adotou o epíteto para a vida) garante que um bom engraxate é, antes de tudo, um bom proseador.
Ele segue, também, uma filosofia que trouxe de Paraíso do Norte, sua cidade natal, no Paraná. “Eu sou calmo igual a água de poço. Tem que ser assim pra levar a vida, né?”. Devagar e calmo, mas sempre longe."
(Extraído da Gazeta do Povo)
Paulo Grani

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