segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Histórias de Curitiba - Lembranças de D. Flora

 

Histórias de Curitiba - Lembranças de D. Flora

Lembranças de D. Flora
Flora Munhoz da Rocha

Fugindo de Curitiba: Coisa divertida é ver carioca padecer de frio em Curitiba.
Penalizei-me com o drama de minha cozinheira Izabel, mulata de pouco pescoço mas muito feliz de busto.
Num final de outono trouxe-a comigo do Rio de Janeiro.
Veio resoluta com toda sua bagagem e até a filha pequena.
Crioula de morro, de escola de samba, decidida, cheia de animação.
De início enfrentou de bom grado a cidade diferente, o clima diferente.
Ainda resistiu algumas semanas abafando-se dentro de casacos, meias, mantas -roupas que desconhecia.Mas de repente foi murchando de dar dó.
Enregelou-se definitivamente com nossas sucessivas geadas e apoderou-se dela o terror de nunca mais se recuperar.
Em completa ausência de felicidade, mal completava seus pensamentos curtos:
- "Estou doente, estou com dor de frio. Não me mande mais na rua, fico gelada até no casco da cabeça.
Chega a sair o bafo da alma pela boca". Em vez de trabalhar ficava encorufada, os braços cruzados sobre o peito e arregalados olhos suplicantes. Não reconhecia mais a Izabel assim de rosto apagado suportando sua dor de frio.
Assaltada pela desesperada saudade do mormaço carioca se erguendo do asfalto e invadindo todas as janelas, só tinha uma prece:
- "Mande-me embora. Não aguento, preciso sentir calor".
Debalde eu mostrava o ar puríssimo, o azul do céu como já mais havia visto.
O pior é que estragou o cachorro, guardião da casa. A noite, enrolava o cão num cobertor e o escondia debaixo da cama dela.
Se a gente protestava, ela também:
- " E pecado deixar o bicho gelar lá fora".
Pobre Izabel.
Mandei-a de volta, sim.
Quis sabê-la vivendo de novo devolvida ao seu chão quentinho de Copacabana.
"Double" de Copeira:
Em 1653 quando o Presidente Getúlio Vargas visitou o Paraná, Bento era o Governador.
Foi determinado que a comitiva presidencial seria recebida em nossa casa para aperitivos, antes do banquete oficial.
O serviço de drinques e acompanhamentos foi meticulosamente determinado e, cumprida minha parte, nossa filha Daisy ficou a postos para supervisionar tudo, afim de evitar qualquer incorreção ou sanar algum imprevisto.
E o imprevisto aconteceu. Lá dentro a coisa se complicava.
Bateu tremedeira em nossa empregada.
Apavorou-se com a responsabilidade e começou a choramingar.
Getúlio crescia como um bi-cho-papão e no momento de servir sumiu de vez.
Por mais que a chamassem não aparecia.
O crepúsculo virava a noite e nada dos drinques aparecerem.
Eu ali por fora do acontecido não despregava os olhos da porta por onde deveriam surgir as bandejas.
Mas, "oh, espanto!" quando vejo despontar seguindo o garçom a minha própria filha Daisy, uniformizada de copeira sustentando a bandeja dos canapés.
Eu a via transformada.
Vestira roupa escura, avental rendado, sapato de verniz. O rosto livre do mais leve vestígio de maquiagem, o cabelo esticado em rabo de cavalo.
Seus dezoito anos enfrentavam a situação e prosseguia inclinando-se um pouco para frente ao apresentar sua bandeja.
Mas quando se acercou do pai e ficaram frente-a-frente ele se mostrou de tal maneira surpreendido que uma frase iniciada ficou abruptamente interrompida.
No final, quando nos dirigimos para os carros e a entrevi entregando os agasalhos, minha mão se ergueu em sua direção numa espécie de benção.
Mais tarde nós a veríamos na festa que se seguiu ao banquete, já no seu cintilante vestido branco.

Flora Munhoz da Rocha foi primeira-dama do estado do Paraná.

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