A Ur “dos caldeus”, a Bíblia e a arqueologia.
Texto autoral de: Nivaldo Aparecido Dias Muniz. 13/05/2023.
Ao lermos o livro de Gênesis, capítulo 11, versículo 28, nos deparamos com a seguinte passagem:
“Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã; e vieram até Harã, e habitaram ali”.
Ur, que durante um tempo teve sua existência posta em dúvida, até sua descoberta arqueológica, entre o final do século XIX e o início do século XX, é uma cidade muito antiga, uma das mais antigas do mundo, foi nela que se descobriu o código de leis mais antigo já encontrado, o código de Ur-Nammu, que precede o mega famoso código de Hammurabi em pelo menos 500 anos!
Apesar dessa vitória arqueológica para o livro do Gênesis a denominação “dos caldeus” para a cidade de Ur provou-se em grande medida equivocada, hoje sabemos que esse epíteto é na verdade um erro de narrativa e cronologia que o escriba que compôs esse relato do Gênesis cometeu, permitam-me explicar o porquê (...).
O termo “caldeu” era o “nome pátrio” de uma tribo semítica que habitava onde hoje é o território da atual Síria, trata-se mais especificamente de um clã dos antigos arameus (os Caldú), povo que vivia na bacia do médio Eufrates lá pelo final da era do bronze e, portanto, geograficamente muito longe de Ur, que pela mesma época começava a ser habitada por um povo misto entre amorritas (também chamados de acadianos) e sumérios.
Pois bem, como começa a confusão?
A confusão começa quando o relato da viagem abraâmica foi escrito em sua forma final, naquela época, lá no segundo império babilônico, os Caldú haviam migrado para a região do baixo Eufrates, onde se encontravam as cidades da Babilônia, Acade, Ur, Nippur, etc, estabelecendo sua língua, o aramaico, como língua franca em todo o oriente médio, fato que durou até a idade média, diga-se de passagem.
Todavia, é preciso entender que os escribas e cronistas hebreus, e posteriormente judeus, não se referiam aos caldeus enquanto povo, nem no Gênesis, nem em Daniel, ou qualquer outro livro onde esse nome aparece, “caldeu” para os escribas bíblicos era na verdade um termo similar a “mago”, ou “adivinho”, aliás o próprio nome “mago” faz referência a outro nome pátrio, só que desta vez referindo-se a tribo a dos Magís, estes de origem irâno-persa, entraram em contato com os hebreus durante o período de dominação aquemênida no Oriente Médio.
Trata-se, portanto, de uma certa referência que o escriba quis passar no texto ao fato de que na sua visão, o patriarca originário da linhagem de Israel era proveniente de uma terra supersticiosa e idólatra, numa certa generalização de que “caldeu” era sinônimo de “pagão”.
Há também nesse sentido uma outra interpretação, que não é exatamente excludente da primeira, mas que também vale a pena ser citada, a de que os israelitas eram na verdade, ou melhor, se viam de certa forma, como arameus (aqui cabe citar que na antiguidade, tanto o próto-hebraico, quanto o próto-aramaico eram inteligíveis entre si, como são o português e o espanhol nos dias de hoje!), não podemos nos esquecer que Terah (também chamado Taré em algumas traduções), pai de Abrão, era segundo o relato bíblico um líder tribal em Haran e parte de seu clã, incluindo ele próprio, permaneceu na terra dos arameus, e essa identificação com os caldeus também provenha daí.
Vejamos também que, Labão, pai de Raquel e Lia e, portanto, sogro do próprio Jacó, depois chamado “Israel”, era não apenas arameu, de sangue e nascimento, como também ávido praticante de idolatria e adivinhação (feita por intermédio dos Terafins, ídolos domésticos, protetores do clã), vejamos o que diz o capítulo 25 do Gênesis, versículo 20, sobre Labão:
“ Abraão gerou Isaac. Isaac tinha a idade de quarenta anos quando se casou com Rebeca, filha de Batuel, o arameu, de Padã-Arã, e irmã de Labão”.
Mais a diante, no capítulo 31 do Gênesis, temos nos versículos 19 e 20, que tratam da fuga de Jacó de Haran, temos a dupla confirmação dessas afirmações:
“Raquel, aproveitando um momento em que seu pai fora tosquiar suas ovelhas, roubou os terafin de seu pai; e Jacó enganou Labão, o arameu, ocultando-lhe sua fuga”.
Tudo isso ajuda a compor essa associação entre “caldeu” e “mago” ou “adivinho” que depois irá se consolidar no restante da narrativa bíblica como um sinônimo de indivíduos que exercem práticas idólatras (...).
Referências:
BÍBLIA. Português. A bíblia sagrada. Trad. Por João Ferreira de Almeida: Sociedade bíblica do Brasil S.A, 1995. 1227p.
Chouraqui, A. Os homens da Bíblia – São Paulo. Companhia das letras: Círculo do livro, 1990. 340p.
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